O que motiva a escrita desta carta são os desafios vivenciados na relação com meu filho, no caso um rapaz trans, e também as dificuldades que observei ao longo da minha trajetória como psicólogo clínico, onde pude vivenciar junto a alguns sujeitos a angústia tanto dos filhos quanto dos pais.
Das experiências adquiridas na clínica com atendimento a sujeitos trans, neste recorte específico, ficou marcado certa época em que acompanhava uma família onde, dentre outras angústias, traziam a dificuldade em aceitar que tinham uma filha trans. Quando fui acolher o pai dessa menina, o mesmo, em um momento de grande angústia, deu um tapa na mesa do consultório dizendo: "é muito fácil você, que está do outro lado da mesa, querer que eu aceite".
Na clínica não trabalho para que um pai ou mãe aceite ou não. O objetivo é facilitar a compreensão sobre a angustia mobilizada naquele contexto e, consequentemente, promover o entendimento e a compreensão daquele sujeito acerca do que está sendo vivenciado. Contribuir também para que o mesmo se conheça, conheça quais são os seus desejos quais as angústias o porquê das angústias, como no caso desse sujeito que dizia ter o sonho de ser avô, e seu filho se identificando como uma menina, a possibilidade de ser avô, parecia não ser mais possível. Tal fala demonstrava também a crença desde sujeito sobre questões relativas a paternidade, uma crença de que a paternidade ou maternidade não seja possível a sujeitos trans, sendo esta é uma visão limitada.
Mas o fato é que aquele sujeito não sabia que o psicólogo lhe atendendo, também era um pai de um menino trans e que, para além das questões teóricas, podia imaginar um pouco o que aquele pai estava a vivenciar. Não era porém meu papel ali estar no lugar de igual com ele, por mais que eu me sensibilizasse tanto com sofrimento dele quanto com o sofrimento da filha, o papel era de proporcionar uma visão mais ampla sobre o contexto reduzindo a angústia e sofrimento de toda a família.
Voltando a minha história, já que agora escrevo de pai aos pais de filhos trans, trago um pouco da minha relação com a paternidade.
Muito jovem me tornei pai, este sempre foi um dos desejos que nortearam a minha vida, marcado pela minha relação com o meu pai ou com a falta que senti dele, pois o perdi aos 9 anos de idade devido à complicações clínicas. Foram porém nove anos de uma convivência muito afetuosa em um contexto marcado por privação relativa a questões financeiras que vivenciamos naquela época.
Aos 19 anos me tornei pai de um menino, hoje já maior de idade. Posteriormente, de uma maneira agora programada, me torno pai novamente. Desta vez, de uma menina. Essa menina nasce um parto prematuro, parto de risco devido algumas questões de saúde da mãe. Lembro-me do dia do parto onde a mesma passa por mim após o parto bastante rochinha, o termo técnico que usa para isso na área da saúde é cianose, que significa que a criança teve alguma falta de oxigênio. Neste contexto, minha filha foi então entubada e transferida para o CTI.
No CTI acompanhei por cerca de dois meses. Inicialmente eu a via pela porta de vidro, depois podendo adentrar e tocar, até que começou a reagir e ganhar peso, sendo assim possível pegar no colo. Nestes primeiros meses, tive a oportunidade de vivenciar e acompanhar o desenvolvimento de perto, já que a mãe, devido ao parto difícil, precisou ficar de repouso em casa, sendo eu que todos os dias levava o leite materno até o CTI onde ficou internada em Belo Horizonte.
Posteriormente essa menina foi reagindo, foi ganhando peso e depois veio para casa. Os primeiros anos de vida seguiram sem mais complicações. Neste momento de minha vida eu trabalhava com uma grande carga horária em uma empresa do ramo alimentício em Belo Horizonte, mais especificamente no comércio, ficava pouco em casa porém o pouco que ficava era dedicado à família em uma relação muito próxima e de muito apego com meus filhos. A menininha que foi crescendo com seus cachinhos dourados era um dengo para mim. Cito esse fato porque isso ficará marcado posteriormente na minha relação com esse filho quando o mesmo tem a compreensão a respeito de seu gênero, se identificando como um menino e assumindo a identidade Trans.
Dentre os muitos desafios nessa história, aconteceu a separação entre eu e a mãe deste filho quando este estava com seus seis para sete anos de idade. Uma separação que deixou grandes marcas na vida de ambos, tanto do filho quanto do pai, mas que principalmente para o filho naquele momento no início de sua idade escolar, trouxe sérios problemas de socialização dentro deste e de outros ambientes. Problemas que acompanhei de perto, buscando estar sempre presente, vivenciando uma grande angústia de tentar fazer com que fosse mais fácil para esse meu filho a sua estadia dentro da escola.
Sempre acreditei na transformação que a educação pode promover a um sujeito. Tendo eu vindo de uma família com dificuldades financeiras encontrei através da educação possibilidades de sair um pouco mais daquele lugar difícil onde havia vivenciado junto com meus pais a experiência de morarmos de favor, embora muitas vezes as pessoas tentassem nos ajudar, de minha parte mais especificamente, por vivenciar muitos desafios e abusos diversos, fiz desde cedo a aposta na educação, aposta nos estudos, como minha maneira de investir na possibilidade de ascensão pessoal e profissional. Ver meu filho com dificuldade para seguir estudando foi uma das angústias vivenciadas neste período pós separação.
Aconteceu porém que por mais que eu tenha investido como pai para que minha filha seguisse nos estudos, isso não foi possível, e a evasão escolar ocorreu. Foi angustiante, mas não dependia só de mim. Busquei desde a primeira infância, ofertar tratamento psicológico sem sucesso, não havia adesão, não que a criança não aderisse, mas isto passava também pelo desejo de outra pessoa além de mim. Tendo então meu filho parado de estudar resignei-me a este fato, e segui acompanhando por perto.
Na virada da adolescência para a juventude meu filho tem então uma virada de chave na sua compreensão de vida. Neste momento o mesmo se identifica com um menino trans. Neste mesmo período, agora por seu próprio desejo, inicia um trabalho de psicoterapia com a psicóloga do postinho. Dou ênfase a este ponto pois, psicólogos do postinho, volta e meia sentem a sensação de estarem enxugando gelo, de que o trabalho não tem resultado, devido a atendimentos muito espaçados onde há uma grande demanda. Porém, neste caso é em muitos outros, o trabalho do profissional se mostra fundamental.
Voltando a esta mudança compreendida por meu filho, tendo eu já estudado e trabalhado com diversas questões que envolve os conflitos de situações como esta, tive uma maior facilidade para lidar com a questão. Muito embora tenha tido uma maior facilidade fato inclusive que contribui para que meu filho tivesse certa facilidade em me falar sobre este fato, não deixei de vivenciar ali algumas angústias referente a essa mudança.
Todo pai e toda mãe, ou quase todos, quando tem um filho, cria planos, deseja. Comigo não foi diferente. A mudança então de minha filha, marca o fim do ciclo de uma menina como filha que eu tinha. Entre outras mudanças, acompanhei o corte dos cabelos aqueles cabelos que eu citei no início dessa conversa, término dos cachinhos que esse filho sabia inclusive o quanto que eu achava lindo, e fui acompanhando as diversas mudanças e de alguma maneira lidando com luto referente esse fato.
Com o passar o tempo, à medida que essas mudanças foram se consolidando ou estão se consolidando até hoje, este meu filho, agora um menino, vai encontrando-se e encontrando uma melhor maneira de viver e se posicionar enquanto sujeito no mundo. A medida que ele foi se encontrando, fui observando que eu tinha ali o final de um ciclo com a menina que eu havia visto nascer, mas além da perda, estava tendo também a possibilidade, oportunidade, de acompanhar novamente o nascimento do meu, agora filho. E acompanhar este momento tem sido uma grata surpresa cotidiana a medida que aquele sujeito que outrora não conseguiu estudar, consegue então retomar os estudos e vai pouco a pouco, concluindo, sendo que, os diversos anos de estudos perdidos na infância e adolescência, com pouco menos de um ano estão sendo recuperados através da educação para jovens e adultos, EJA. Além de estar concluindo o ensino fundamental e médio, esse sujeito consegue também neste momento realizar um curso técnico profissionalizante. Um sujeito que vai nascendo crescendo e criando projetos de vida, seus projetos de vida, dde maneira que sou grato pela oportunidade de ver e acompanhar novamente o nascimento de um filho. Nascimento que é diferente daquele que eu havia observado na primeira infância. Nascimento é que é diferente daquele que eu vi dar os primeiros passos, mamar o primeiro leite materno através de uma seringa em um CTI hospitalar. Mas que por outro lado vejo dando seus primeiros passos rumo a uma carreira profissional, vejo conseguindo por si só a mudança dos documentos os quais dão origem ao nome que escolheu, vejo alimentando-se do conhecimento e da Liberdade que esse conhecimento propicia através dos estudos.
Desta maneira e já concluindo essa longa carta, dirijo-me aos pais de filhos trans. Àqueles que vivenciam essa angústia, àqueles como aquele pai que acompanhei como profissional por um curto período mas que pude acompanhar sua filha. Que estes pais possam encontrar uma maneira de ressignificar a sua paternidade e não se deixarem cegar por preceitos morais até mesmo ultrapassados. Por ideias dominantes ainda em uma sociedade extremamente machista e patriarcal. Que estes pais possam encontrar uma maneira de ver que ao assumir a sua identidade de gênero, o filho demonstra uma atitude de uma coragem imensa. Que ao apoiar, ao acolher, estes pais podem ter a oportunidade de ressignificar e ver novamente esse filho seguir caminhos que era os sonhos daqueles pais, mas de uma maneira diferente. Seguir os sonhos daquele filho, mas que não foge totalmente aos desejos de pais que querem vê-los crescendo, querem vê-los com oportunidade na vida, querem vê-los vencendo
Transmito através dessa carta o desejo de que outros pais possam compreender o quão importante é para seus filhos o fato de poder encontrar apoio de seus pais neste momento de tão grande luta na vida. E que os pais também podem encontrar alegria em ver seus filhos renascendo e que acima de tudo, existe a possibilidade de seguir reinventando possibilidades de vida sempre.
Um abraço.
* Os fatos refente a casos de outras pessoas aqui citadas, foram alterados devido à nescessidade de se manter o sigilo profissional.
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